A Brincadeira do Boi é tão vasta no território brasileiro quanto é ampla a nossa extensão espacial. Trata-se de uma manifestação cultural que abrange de norte a sul do país e se desdobra em fisionomias variadas, sortidas, que tornam única cada festa regional. Há um elemento, entretanto, que sempre as une: é o boi que reina sobre a alegria do povo em festa.

A grande abrangência da brincadeira traz consigo, portanto, muitos contextos sociais e políticos que permitem entender as histórias e os acontecimentos específicos que marcam a cultura de cada estado, ficando nítido que é na arte que muitas relações históricas se apresentam para a posteridade, constituindo-se como um livro vivo de narrativas de outrora.

Neste Múltiplo Ancestral, fomos convidados a adentrar um dos muitos mundos do boi e a percorrer uma trilha de aprendizados e saberes com um grande mestre dessa arte, o músico, ator e dançarino Helder Vasconcelos. Tecendo caminhos festivos entre dança, performance e música, Helder nos relembra a expressividade e a representatividade cultural trazida pela Brincadeira do Boi.

A partir da narrativa de criação do Boi Marinho, ele nos mostra que o Boi pode se reinventar na contemporaneidade e nos permite, de forma generosa, uma breve contextualização sobre algumas raízes, tempos e espaços que se ligam a tal manifestação, indo do religioso ao profano, do regional ao nacional.

“Com o espinhaço de ripa
E a cabeça de animal 
Corpo coberto de fita



Esse é o boi marinho



Vai abrindo o seu caminho



Aqui no meio do pessoal



Feito para o Carnaval



O povo identifica



Esse boi original



Que tem balanço e tem carinho”

Entre o sagrado e profano

“O que é essa brincadeira
e do que ela precisa?
Unicamente de ter o boi”

Como manifestação cultural, a Brincadeira do Boi tem origem em meados do século XVIII, a partir de uma combinação entre culturas européias, africanas e indígenas, assim como de elementos teatrais que vão do drama à comédia, da sátira à tragédia. A brincadeira nasce como maneira crítica de ver a situação social dos negros e índígenas em nosso país, e logo tornou-se algo tão popular quanto as festas de cunho religioso, como aquelas dedicadas à Santo Antônio, São João e São Pedro, consolidando-se como parte de três grandes datas comemorativas brasileiras: o Carnaval, a Festa Junina e o Natal.

Se, de um lado, teve influências do contexto popular e religioso de Espanha e Portugal, remetendo a encenações de lutas da Igreja contra o paganismo, por outro, assimilou elementos corporais e sonoros de tradições africanas e indígenas, como é o caso dos chocalhos e dos instrumentos de percussão. 

Foi a partir dos múltiplos contatos entre distintos povos nos muitos estados do Brasil, afinal, que vieram a surgir várias expressões de nossa cultura popular. Como meio de responder às especificidades de suas populações, assim como desdobramentos sociais e políticos relacionados às respectivas localidades, cada cultura popular fala muito de sua história – até mesmo quando reproduz ou experimenta alguma cultura “vizinha”. 

Se no Rio Grande do Norte temos o reinado do Boi Calemba, o Espírito Santo é o território do Boi de Reis. Em São Paulo, podemos conhecer o Boi de Jacá, e em Santa Catarina aquele que festeja é o Boi de Mamão. Já na rua da Moeda, no bairro do Recife Antigo, em Pernambuco, quem dança feliz sobre águas e vielas, quem hoje dança, rodopia e se reinventa é ele: o Boi Marinho.
Um boi vindo dos tempos de outrora

Apesar do Boi Marinho ter nascido somente em 2000, Helder nos conta que o terreno começou a ser preparado ainda em 1998, a partir de uma oficina de Cavalo Marinho em São Paulo. Como um sonho e uma brincadeira reinventada por Helder Vasconcelos, a brincadeira surgiu em movimento original e único, unindo as brincadeiras do Boi com diversas outras tradições populares, em especial a do Cavalo Marinho. Como forma de oxigenar o Carnaval pernambucano e contribuir para sua constante efervescência festiva e cultural, o Boi já nasceu reinando nos dois territórios que o formaram: São Paulo e Recife. 

Como manifestação cultural que usa a rua como palco e espaço de ensaio, o Boi Marinho estende sua atuação e importância para além de um espaço de festejos: trata-se também de uma escola aberta de dança e percussão. Apesar de possuir, hoje, um núcleo central de participantes, ele ainda mantém em sua prática uma grande abertura para a integração e a participação de pessoas de várias cidades do Brasil e de outros países, afirmando-se como um convite democrático ao festejar. “Convocamos todos que queiram, sem nenhum pré-requisito, a participarem dos ensaios e da festa carnavalesca com a gente”, afirma o músico Helder Vasconcelos

Reinvenção do hoje, tradições do amanhã

A partir dos relatos e dos registros das saídas do Boi Marinho apresentados no vídeo, ficam evidentes a riqueza e a potência das manifestações populares. Seja na Brincadeira do Boi ou em qualquer outra manifestação, um fato é certo: esses festejos, danças e músicas carregam consigo pequenas tramas e fragmentos culturais que ajudam a nos formar e nos relembram das matrizes identitárias regionais e nacionais que nos unem e nos diferem dos demais. Mesmo aparentando serem distantes territorialmente, tais brincadeiras são tão arraigadas no nosso cotidiano como o arroz e feijão, combinação que também nos alimenta física e simbolicamente.

Ao meu ver, um grande aprendizado trazido por este Múltiplo Ancestral corresponde à permanente possibilidade de ressignificação de nossas tradições culturais, demonstrada com maestria pela trajetória do Boi Marinho. A partir de ações como essa, os corpos contemporâneos são estimulados a reinventar os modos de “fazer e brincar” de outrora – sem esquecer do passado e de suas culturas, mas ao mesmo tempo respondendo aos desejos e às necessidades dos tempos de agora. Afinal, se olharmos para trás, é assim que continuamos o ciclo infinito de invenções e reinvenções que continuamente se tornam tradições compartilhadas por todo um povo.