Nesta edição do Múltiplo Ancestral, as atrizes Renata Figueiredo e Cris Campos, do Grupo Xama Teatro, contam a história do Auto do Bumba Meu Boi. O Grupo Xama Teatro atua há 12 anos no estado do Maranhão, sob a coordenação de mulheres atrizes. Tendo como ponto de partida a arte de narrar, elas constroem espetáculos autorais que resultam de uma partilha de vozes para a criação do texto e da cena.

Difundido por todo o território brasileiro, o Bumba Meu Boi é uma manifestação cultural com raízes afro-indígenas que apresenta características próprias em cada localidade, frequentemente entrelaçando território e identidade cultural. Não por acaso, a história contada e cantada por Renata e Cris nos apresenta estéticas ligadas às roupagens e às toadas (como são chamadas as músicas) do Boi do Maranhão – e mais especificamente da ilha de São Luís, cidade mundialmente conhecida pelas Festas dos Bois, em seus variados sotaques.

Sotaque, por sua vez, é o termo utilizado para determinar as características estéticas musicais e das indumentárias de cada grupo maranhense de Bumba Meu Boi. Na história contada durante o Múltiplo Ancestral, diversos sotaques do Boi se misturam, dando origem a um sotaque único, que homenageia todos os grupos de Bumba Meu Boi de São Luís.

“Abram os olhos, arregalem os ouvidos, fechem a boca para escutar: Histórias… Histórias…”: numa melodia acolhedora, vozes e violão nos convidam a mergulhar na história de Catarina e Mestre Chico, personagens principais do Auto do Bumba Meu Boi.

Tradição e imaginação

O colorido dos figurinos, dos instrumentos, das fitas que compõem o cenário e dos demais objetos de cena se destacam sobre o fundo escuro. De uma maneira primorosa, as atrizes vão construindo os personagens numa fusão entre teatro de animação e teatro de objetos. Mestre Chico, por exemplo, é representado por uma das atrizes a partir da manipulação de um chapéu. Catarina, por outro lado, é representada com a manipulação de uma saia pendurada em um cabide. O boi, diferentemente, ganha vida a partir de um Bumba Meu Boi em miniatura, fazendo referência ao teatro popular de bonecos.

A variação da entonação vocal, assim como os efeitos sonoros produzidos com diferentes instrumentos musicais, são outros fortes elementos que contribuem para que entremos ainda mais na história. Tocando um maracá (espécie de chocalho), umas das contadoras apresenta o personagem do fazendeiro. Com a voz grave, ela dá ao personagem um ar poderoso: “Daqui pra lá, de lá pra cá, é tudo meu!”.

O mesmo personagem fala do seu apego pelo rebanho e da sua preferência pelo boi Mimoso, “o mais bonito, o mais vistoso”. Mimoso era tão querido pelo fazendeiro que só o Mestre Chico, seu funcionário mais competente, era autorizado a chegar perto dele. Essa parte da história é embalada pelo canto de um trecho da toada “Novilho Brasileiro”, do Grupo Boi de Pindaré:

“Lá vem meu boi urrando,
subindo o vaquejador,
deu um urro na porteira,
meu vaqueiro se espantou,
o gado da fazenda
com isso se levantou.
Urrou, urrou, urrou, urrou
meu novilho brasileiro
que a natureza criou”

A partir de então, o enredo segue entre dramas éticos, estruturas de fé e histórias de encantamentos, elementos tão presentes nas manifestações populares. Temos Catarina grávida com seus desejos, Mestre Chico aflito com seus dilemas de atender ou não aos desejos da amada e enfrentar ou não o próprio patrão, e ainda o patrão, que sente sua autoridade desrespeitada e exerce seu poder. Para além da trajetória de cada personagem, também a convocação do sobrenatural surge como importante elemento da construção dessa narrativa, que nas vozes, toques e encenações das atrizes Renata e Cris, ganha o colorido simbólico dos bordados dos Bois do Maranhão.