Um gesto primordialmente pragmático: empenhando-se na prática da caça, o ser humano estica a corda do arco, impulsionando a flecha na direção da presa. Esse movimento remete à necessidade de se alimentar e também à possibilidade de se inventar instrumentos que ampliem essa prática instintiva. A humanidade supera sua subordinação à natureza, atua sobre ela modificando seus fluxos e movimentos, demarcando seu lugar no mundo a partir de uma práxis que sujeita o entorno a seus desejos e intenções.

Contudo, ao soltar a corda e liberar a flecha, o caçador ouve um som. O estremecer da corda tensionada revela que aquele gesto pode superar também uma relação meramente pragmática com o mundo. Podemos imaginar que o gesto poético tenha nascido assim: de uma surpresa, de um estranhamento diante de daquilo que se revela, de forma inesperada. O ser humano descobre que sua presença no mundo não precisa ser necessariamente instintiva. Pode haver um fundo de poiesis em todo gesto humano, e foi a partir dessa possibilidade que se deu a edição de julho do Múltiplo Ancestral do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, conduzido por Carlinhos Ferreira, no CCBB BH.

O público foi recepcionado em um espaço no qual estavam dispostos, no centro de um círculo, diversos tipos de instrumentos de corda. O grupo se caracterizava por uma bem vinda diversidade: famílias, casais, todo tipo de pessoas interessadas em experimentar o instrumento. Ao dirigir-se ao público, o músico tenta o tempo todo desconstruir qualquer relação com a música regulada pelo excesso da técnica, trazendo a referência ao caçador-tocador de arco como uma interessante ilustração dessa abordagem.

“Afinação é um acordo entre instrumentos”

Carlinhos Ferreira coloca a possibilidade da música como encontro que demanda de nós um certo desimpedimento, uma abertura para o imprevisto. Em sua visão, a preocupação exacerbada com a técnica, ou com conceitos historicamente estabelecidos costumam inibir essa aproximação. “Os gestos”, diz o filósofo Jorge Larrosa, “remetem às formas como estamos afinados, sintonizados ou entoados com o mundo, à maneira existencialmente primogênita como nos encontramos no mundo e com o mundo”. Se o som é resultado de um gesto produzido a partir de um atrito entre corpos (as mãos, a boca, o sopro, o instrumento), o que vai garantir a autenticidade desse gesto é a disponibilidade dos sujeitos para o seu acontecimento, condicionada, por sua vez, por uma atitude lúdica diante do mundo.

O músico não nos ensina a tocar o arco, mas, sim, como ele funciona. Cabe a nós, então, descobrir que sons aparecem da fricção entre os nossos dedos e a corda, influenciados pelo toque da pedra ou ainda pela amplificação da cabaça. Carlinhos deixa evidente uma relação de encantamento com a experiência musical: ouvindo-o, temos a impressão de que o contato com o instrumento deve ser, antes de tudo, uma relação de afeto. “Deixar-se afetar”, como o caçador que de repente descobre o som do arco. Agora seria nossa vez de fazer tais descobertas.

“Ainda vai dizer que não sabe tocar um instrumento?”

Munidos de nossos instrumentos, começamos a tocá-los. Aproximando ou afastando as cabaças de nossos corpos ou experimentando diferentes modos de contato entre a corda e as palhetas. Percebendo como os sons são produzidos, bem como suas diferentes reverberações. Depois desse momento, que implicava uma maior intimidade com os arcos, imaginamos juntos uma sinfonia coletiva que seria conduzida por um tema da escolha do grupo. “Água”, sugeriu uma participante.

A única instrução de Carlinhos era que pensássemos em um movimento gradativo que remetesse a uma delicadeza e desse lugar, a partir de certo ponto, a abundância de uma chuva forte. No começo, cada toque remetia a uma gota. Mais adiante, estabeleceu-se um daqueles acordos em que nada é dito, mas todos se entendem. Num crescente, os gestos foram aumentando sua intensidade e frequência, de modo que as gotas espaçadas deram lugar a uma torrente — só possível devido ao espontâneo afinamento no qual estávamos imersos a partir de determinado ponto da performance.

No início do encontro, me lembro de ter comentado com um colega sobre minha falta de familiaridade com instrumentos musicais. Ao fim da bem sucedida sinfonia coletiva de arcos, no entanto, essa mesma afirmação parece ter perdido completamente o sentido.