Era uma manhã de sábado com muito sol na Praça da Liberdade, e a mostra “Paul Klee – Equilíbrio Instável” se despedia de nós.Prontos para realizar mais uma edição do Múltiplo Ancestral, nos percebíamos contagiados por um intenso aprendizado com as cores do artista, desdobrado em um imenso carinho pela ação que estávamos prestes a iniciar.

Dessa vez, como num ritual de homenagem, espacializamos as linhas e cores da pintura de Klee numa grande instalação participativa realizada na lateral do edifício do CCBB BH. Fomos conduzidos por Camila Moreira, artista visual, professora cujas pesquisas contemplam o desenho na atualidade, os processos híbridos, o exílio, a mestiçagem na arte e os processos de criação. Para ativar as primeiras linhas coloridas, Camila convidou os estudantes do Núcleo de Estudos e Ensino em Desenho Contemporâneo, vinculado à Escola de Belas Artes da UFMG.

Em seus cadernos hoje publicados, Paul Klee nitidamente manifesta engajamento em uma pesquisa sobre a linha. O artista reafirma a linha como um elemento básico de composição que atravessa todo o seu processo criando e manifesta-se com ênfase, por exemplo, na produção do período em que lecionou na icônica escola de arte Bauhaus, situada na Alemanha.

Enquanto educador generoso, Klee convida seus estudantes a “levarem a linha pra passear”, tornando lúdico aquele laboratório-escola que propunha interseções entre a arquitetura, o design, a arte e a vida. Há 100 anos, a linha ainda passeava pelo papel, mas se Klee e seus amigos de vanguarda estivessem vivos e produzindo hoje, com certeza se deliciariam com a proposta de Camila, na qual a linha e o desenho brincaram de sair da parede.

Levando a linha para a deriva

Tendo como trilha o som da voz de uma criança que nos orientava pelo verbo “desentraçar”, Camila Moreira e seus orientandos prendiam os novelos em estruturas do prédio. Pouco a pouco, as linhas começavam a se desenrolar, expandindo a fria arquitetura eclética do edifício que originalmente abrigava a Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais.

Nas mãos dos performers, as linhas corriam soltas e felizes, percorrendo e tensionando outras linhas, tangenciando outros corpos, inundando os arredores, se amarrando em grades, postes e árvores, e até mesmo abraçando as mãos de alguns passantes.

Com o tempo, o emaranhado ia ficando cada vez mais denso, fazendo da paisagem uma grande superfície para o desenho. Curioso, o público se aproximava e se jogava no labirinto colorido: uma espécie de “cama de gato” gigantesca, que na imaginação de muitos se convertia em rede de dormir, desafiadores labirintos de fios e, como não poderia deixar ser, um instigante cenário para fotos.

“Múltiplos da Criação”

A liberdade e o prazer presentes ao longo da atividade me recordaram dos quase cinquentenários Domingos de Criação: programa de ateliês abertos de arte educação propostos entre janeiro e agosto de 1971, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, pelo jornalista e crítico de arte Frederico Morais. Curador belorizontino autodidata, Frederico atuava em plena Ditadura Militar, envolvendo-se ao mesmo tempo com questões artísticas, sociais e políticas. Sua afinidade com tais campos culmina na realização dos Domingos de Criação, desde então e até hoje considerados eventos pedagógicos experimentais,ainda definidos por Morais como “manifestações de livre criatividade com novos materiais”.

Naquelas ocasiões,pessoas de diferentes partes da cidade do Rio de Janeiro se reuniam no aterro do Flamengo para uma inventividade experimental e coletiva, explorando e por vezes esgotando possibilidades de criação a partir de materiais diversos, como aconteceu em ações como “Um domingo de papel” e “O corpo a corpo do Domingo”.

Ao rever os registros dos Domingos de Criação, as imagens dos sorrisos nas fotos em preto e branco certamente marcam a memória de quem se interessa por uma arte que privilegia os sentidos, o espaço público e o senso coletivo, aproximando, portanto, estética e política, arte e educação.

Do que é feito um museu?

Tais eventos evidenciam o que Morais defende como espaço público: para ele, a cidade é a extensão natural do museu de arte. É na rua que ocorrem as experiências fundamentais do ser humano, e a sensação daquele exercício vanguardista parecia se repetir de novo durante o Múltiplo Ancestral que em 2019 testemunhamos.

Ao som das gargalhadas altas de quem tropeçava e se enroscava nos bolos de linha, pudemos experimentar a quebra de constrangimentos cotidianos, fazendo com que os limites entre fora e dentro do museu fossem permeados e permeáveis à participação e à intervenção de participantes, espectadores e transeuntes

Na esteira de Paul Klee e Frederico Morais, celebramos, ao recebermos a artista e professora Camila Moreira, ao menos 100 anos de permeabilidade dos processos criativos na vida das pessoas. Quando museus e centros culturais transbordam, as pessoas são estimuladas a construir afetos, compartilhar sentidos e, quem sabe, transformar a sociedade.

Especialmente nessa edição do Múltiplo Ancestral, os artistas e educadores envolvidos na atividade mobilizaram a participação popular, contribuindo para fortalecer a presença de atividades relacionais e colaborativas no escopo do centro cultural. Em ações como essa, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação reafirma o compromisso de ativação de seus contextos de realização como espaços de cidadania, articulação, encontro, fruição e práticas artísticas.