Em um fim de tarde de domingo, em meio à agitação das festas juninas que acontecem em Minas Gerais e em muitos outros estados brasileiros, certa expectativa já tomava o público presente no pátio externo do CCBB BH, atento às cores, aos instrumentos de percussão e à iminente gira do “Bumba-meu-boi”. A tradicional festa cujas origens remontam ao século XVIII, principalmente no Norte e no Nordeste do país, foi conduzida pelo arte-educador, músico e artesão Marcos Rhossard, como parte da programação do curso Múltiplo Ancestral.

Realizado em um ambiente espaçoso, com capacidade para receber grande público, o evento teve início com algumas canções propostas pelo convidado. Ao seu toque de maestro, o grupo repetia os versos e tudo se desencadeava: vozes, ritmos e dança mesclados aos sorrisos dos que estavam presentes. Se, no início, os corpos ainda reagiam timidamente, aos poucos, muitos foram se entregando ao convite dos tambores frenéticos e enérgicos, permitindo-se experimentar os ritmos da festa. À medida em que a roda se formava, o boi, assim como na lenda, renascia perante os olhos dos visitantes, desafiando com seus chifres os brincantes corajosos que aceitassem sua dança.

O evento teve duração aproximada de duas horas, e assistimos juntos ao pôr do sol, que pouco a pouco se escondeu no belo horizonte da capital mineira. Ao anoitecer, o grupo folclórico acendeu uma fogueira em um barril para afinar os instrumentos musicais, esticando as peles dos pandeiros e tambores aproximando-os do fogo. Acariciados pelo calor da brasa, os instrumentos rústicos se tornam mais dóceis aos calos nas mãos, vibrando sons mais fortes e agudos.

Em determinado momento da apresentação, uma das participantes do grupo folclórico ofereceu ao público alguns pedaços de madeira, orientando-nos a usá-los como uma espécie de “matraca”. Segurando um pedaço em cada mão, bastava ouvir o ritmo dos tambores e segui-lo, formando rapidamente uma bela orquestra de sons. Se, ao longo da parte inicial da apresentação, o grupo conduzia os principais instrumentos de percussão, dentre os quais tambores, pandeirões e tambores-onça – um tipo de cuíca rústica de som gravíssimo, mais adiante o público pôde ainda experimentar a potência dos próprios dedos sobre as peles de cabra esticadas que em geral constituem a superfície dos instrumentos.

A sincronia dos instrumentos conduzia sutilmente o bater intuitivo das palmas e das matracas de madeira, o movimento ritmado dos pés e o balanço descontraído dos quadris. O convite implícito do som dos tambores parecia despertar os gestos espontâneos adormecidos. O ritmo é a primeira linguagem do corpo, basta observar o compasso da respiração ou dos batimentos cardíacos. Tudo em nosso corpo vibra um ritmo sutil, e, quando nos unimos em uma única voz, melodia, harmonia e ritmo, nos sentimos conectados a algo indescritível. Dessa forma, o ritmo, força instintiva nos seres vivos, nos relembra da pureza tácita dos sons, dos sorrisos da infância e do pasmo inicial que surge apenas na experiência de olhar para a vida como se fosse a primeira vez.

Tradição em movimento

A origem do Bumba-meu-boi evoca as histórias do nosso povo e da nossa terra enquanto tradição que se perpetua sendo transmitida de boca a boca, de pai a filho, de geração a geração. É possível resgatar um pouco dessa história conhecendo a lenda que deu origem à festa e observando o termo bumbar, que pode referir-se tanto ao ato de tocar a zabumba como ao som da pancada do chifre do boi . Especialmente no Nordeste conta-se que Pai Francisco, atencioso marido de Mãe Catirina, mata e arranca a língua do boi favorito de um fazendeiro para atender os desejos de sua mulher grávida. Ambos trabalhadores escravizados, eles aguardam a ira do senhor da fazenda ao descobrir a morte do animal. Entretanto, o fazendeiro busca a ajuda de curandeiros e pajés que conseguem operar a ressurreição do boi. Para celebrar tal milagre, uma grande festa é realizada em comemoração ao feito.

No caso da festa realizada pelo CCBB Educativo BH, um jovem vestido como boi, entendido pelos povos escravizados e indígenas como um companheiro de trabalho, símbolo de força e resistência, dançava no meio do grupo de músicos e participantes. Ao mesmo tempo, um toureiro no centro da roda empunhava um cetro de fitas coloridas, movendo-se em uma dança com o boi até passar o bastão ao próximo competidor. Algumas crianças ainda se vestiram como pequenos Bumba-meu-boi, dançando no centro dessa roda viva que às vezes se expandia e às vezes se contraia, caminhava em círculo, fila dupla ou apenas permanecia parada próxima à fogueira.

Os tambores cessaram ao gesto final de Marcos, sucedido por uma despedida calorosa entre os participantes, repleta de abraços, apertos de mão, sorrisos e muita gratidão. Celebrar uma tradição é reviver o passado e evocar aqueles que lhe deram origem. Por isso, ocupar e resistir são as palavras que ainda ressoam nos ouvidos, em ritmos rápidos e dançantes, após vivenciar essa festa: um banquete de cultura, uma aula de história ou mesmo um colo de vó onde se pode ouvir histórias tão antigas que sempre parecem ser contadas pela primeira vez.

Ao ocupar com cultura popular espaços originalmente projetados pela e para a elite, rompemos com antiquadas estruturas sociais, subvertendo os usos dos espaços culturais e trazendo para o centro aqueles sujeitos sociais que foram marginalizados e subjugados à periferia. Resistir, de igual modo, é uma palavra que ganha força e se alia à festa, sobretudo em tempos que apagam tradições, memórias e experiências, ao mesmo tempo em que estimulam a despersonalização do sujeito virtualizado, cada vez mais artificial e distante de experiências humanas, e facilitam a massificação da cultura em detrimento das festas populares que constituem nossa múltipla identidade nacional.