Como é viver em uma sociedade alicerçada em barreiras comunicativas, na qual a multiplicidade de idiomas foi e ainda é majoritariamente deslegitimada pela imposição de uma língua gerada por um processo colonizador? Foi a partir desse questionamento que o encontro Múltiplo Ancestral realizado em setembro de 2019, no CCBB SP, possibilitou o diálogo entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte da cidade de São Paulo, para repensar práticas, estimular a empatia e produzir materialidades artísticas.

Designado como Setembro Azul, o mês de setembro é tradicionalmente dedicado à visibilidade da comunidade surda brasileira. Nesse mês, são realizadas diversas atividades voltadas à conscientização acerca das conquistas e barreiras enfrentadas pela comunidade surda ao longo da nossa história. Nesse contexto, a atividade programada teve como ponto de partida a criação de um espaço de produção artística voltada à temática do Setembro Azul. A atividade em questão consistiu na prática do Slam, ou batalha de poesias, com a especificidade de pressupor a criação e apresentação de poesias em português e Libras.

A atividade foi ministrada pela atriz e dançarina Catherine Moreira, que vem atuando nos últimos anos, tanto na capital paulista quanto em outras cidades, junto à luta pelo alcance de direitos negligenciados à comunidade surda. O encontro contou ainda com a colaboração de duas intérpretes para garantir o direito à comunicação mútua entre pessoas surdas e ouvintes.

Corpos em ação

Realizada no térreo do prédio do CCBB SP, a atividade ocupou toda a rotunda da área central, temporariamente convertida em palco para as experimentações artísticas dos participantes. A ocupação desse espaço de maneira “não convencional” mostrou-se um fator importante no que se refere ao convite e à abertura à participação do público espontâneo, que se deparou com a atividade em diferentes momentos de seu andamento e, ainda que por alguns instantes, se prontificou a dela fazer parte.

Por ser uma língua visual-espacial, a prática da Libras requer a utilização de diversos elementos corporais que formam e dão nuances às narrativas criadas, como por exemplo, expressão facial, expressão corporal e os sinais propriamente ditos e constituintes de uma gramática própria. Por esses fatores, a construção da atividade esteve atrelada à ativação e sensibilização dos corpos dos participantes.

Por meio de recursos teatrais como jogos de improviso e interação coletiva, a convidada estimulava os participantes a se colocarem em situações extra cotidianas, envolvendo, por exemplo, a descoberta de limites corporais e adentrando experiências muitas vezes desconhecidas por pessoas que não praticam atividades corporais e de elaboração cênica.

O que é a poesia, afinal?

Seria a poesia apenas a elaboração de palavras ordenadamente, via determinada métrica? E o que é um corpo poético? Quais seriam suas potencialidades, e será que existiria, por ventura ou desventura, algum corpo não-poético? No decorrer da atividade, ficou evidente a potência poética de todos os corpos envolvidos no processo. Todo corpo é capaz de produzir narrativas, sejam elas dotadas de recursos falados ou não. Múltiplas narrativas e imagens surgiram a partir da interação com objetos, com o chão, com as colunas do prédio e, certamente, com os outros participantes.

Seja por meio de recursos expressivos livres, seja a partir da gramática e da estrutura da língua brasileira de sinais, todos puderam – e podem – trazer à tona uma pulsão poética via movimento corporal. Assim como na dança, a força motriz da poesia sinalizada é o gesto em movimento. É ele que constrói e desconstrói mundos, que dá nuances e camadas às mais diversas tessituras.

A poesia em Libras extrapola fronteiras no que tange a designação de linguagens artísticas. Perpassa elementos do teatro, da dança e da performance, reorientando e reelaborando tais elementos para a construção de uma linguagem única e em constante transformação. Certamente uma inspiração para aqueles e aquelas que atuam como poetas e poetisas, assim como para aqueles que se deparam com a poesia e a língua de sinais pela primeira vez.