O futuro é ancestral. A história do nosso povo é, sem dúvidas, um ato político. Um ato de resistência. Dentro da nossa cultura,incluímos memória, criatividade, força e sabedoria. E quando falamos de cultura, falamos também de ancestralidade: daquilo que nos conecta física e espiritualmente a nossos antepassados.

Para nós, povo preto, falar de ancestralidade vai além de falar sobre as gerações que nos precederam. É também entender que, em nossa herança genética, estão presentes as dores e as lutas de um processo sombrio que caracterizou a escravidão. E ainda entender, sobretudo, a pluralidade cultural e simbólica ressignificada e transmitida por aqueles que conseguiram desembarcar aqui. Conhecendo nossa própria história, somos capazes de pensar sobre o nosso presente e sobre o futuro que queremos para nós.

Somos suficientemente talentosos e talentosas para podermos falar de nossa história por meio de diversos formatos e estilos, e na edição de julho de 2021 do Múltiplo Ancestral, pudemos conhecer o trabalho do compositor e músico Amaro Freitas. Nascido na periferia do Recife, Amaro Freitas nos fala sobre a partir de uma carreira profissional marcada por muito trabalho e reconhecimento dentro e fora do país. Ao longo do encontro, conta histórias por meio de uma imersão musical que viaja no tempo e resgata a memória de nossos ancestrais, representada nessa performance pela história do escritor Baquaqua e por Sankofa, símbolo Adinkra pertencente ao povo Akan.

Sankofa, aliás, foi o nome escolhido pelo pianista para intitular seu terceiro álbum, e Baquaqua é a terceira faixa dessa produção, que mostra com originalidade e muita emoção os caminhos percorridos pelos negros ao longo do tempo. Para contextualizar a composição da faixa, Amaro nos conta brevemente quem foi Baquaqua e de que forma o conceito de sankofa atravessou sua história.

A escravidão contada por um escravizado

Conhecer a história afro-brasileira é importante não só para nós, filhos de África, que a partir desse contato podemos entender melhor nossas raízes: é também muito importante para a história brasileira como um todo, uma vez que o país se constituiu – e se constitui – em grande parte pelas mãos de africanos em diáspora. Quando consideramos que a escravidão no Brasil existiu teoricamente por quase 400 anos, devemos entender também que muitos foram os esforços para que a memória dos negros não fosse contada.

Em suas pesquisas, Amaro descobriu a história de Mahommah Gardo Baquaqua e viu como a produção biográfica de um escravizado foi importante para refletir sobre questões quase sempre silenciadas pelas narrativas oficiais. A partir de Baquaqua, Amaro se pergunta: “Por que sou assim hoje?” – e logo podemos compreender que a pergunta do pianista está diretamente relacionada ao caminho de ida ao passado, ao encontro daqueles que vieram antes dele, para que hoje ele possa se conhecer melhor.

Baquaqua foi a inspiração de Amaro para a produção de uma faixa sonora que traduz em notas, ritmos e sensações a vida do primeiro escravizado que escreveu a própria biografia – ao menos o primeiro entre os que conhecemos até hoje. E a história do personagem tem seu início como a dos milhões de africanos sequestrados do continente.

Baquaqua nasceu no final da década de 1820, em uma família muçulmana que vivia em Bergoo, um reino situado na região onde hoje é o Benin. Traficado para o Brasil na década de 1840, desembarcou em Pernambuco, para trabalhar inicialmente como padeiro. Sofrendo violência constante, tentou se libertar de toda a dor que vivia e acabou se jogando na chamada “calunga grande” – expressão associada ao mar que, durante as travessias atlânticas, foi usado como cemitério. Porém, o senhor que o havia comprado ordenou que fossem buscá-lo no mar, impedindo o seu suicídio e ao mesmo obrigando-o acontinuar trabalhando e vivendo todo o horror da escravidão.

A primeira fase da vida de Baquaqua se aproxima da experiência de Amaro Freitas, e sabemos disso quando o músico cita que seu pai também foi padeiro. A partir do enredo, ele nos convida a refletir sobre o sustento da casa onde cresceu, provido por seu pai, e destaca o fato de que hoje eles são livres – e são livres porque um dia Baquaqua também foi.

Depois da traumática experiência em Pernambuco, os caminhos de Baquaqua mudaram, e ele foi trazido para o Rio de Janeiro, onde trabalhou em um porto, transportando cargas. Aquele trabalho o levava a diferentes lugares do Brasil e também, eventualmente, para fora do país. 

Em uma dessas viagens internacionais, Baquaqua desembarcou em Nova Iorque e lá foi liberto por abolicionistas, conseguindo estudar e se alfabetizar naquela nova língua. Mais tarde, se mudou para o Canadá, onde trabalhou com o editor Samuel Moore e publicou um livro de memórias “A Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua, um Nativo de Zoogoo, no Interior da África” (Biography of Mahommah G. Baquaqua, a Native of Zoogoo, in the Interior of Africa). Depois disso, ele seguiu para a Inglaterra – mas dessa fase de sua vida ainda não há registros publicados. 

Antes de encerrar a narrativa, Amaro nos conta ainda sobre a vontade amplamente declarada por Baquaqua: retornar para África, contar a história de sua vida a seu povo e conscientizar os jovens sobre a realidade da escravidão.

Volte e pegue

Com a ideia de retornar a seu lugar de origem e à própria ancestralidade, Baquaqua nos ensina sobre a noção de Sankofa, símbolo adinkra do povo Akan. Conforme Amaro nos conta, Baquaqua viveu em um mundo perverso, mas tinha histórias incríveis sobre nossas ancestralidades, potências e raízes. Ao conseguir viver a travessia, fugir, se alfabetizar e contar nossas histórias, Baquaqua nos ensina que temos alma e podemos ir além.

Antes de qualquer coisa, esse ensinamento do escritor é importante para reafirmarmos nossa autoestima e entendermos que podemos ser o que quisermos. E como exemplos desse “poder ser”, Amaro apresenta colares que representam nosso povo, menciona o cabelo crespo, as roupas africanas e uma série de outros símbolos que representam nossa identidade. É nesse sentido que o conhecimento transmitido por Baquaqua nos fala de conexão: ao relacionarmos nossa ancestralidade com o que vivemos no presente,, podemos elaborar o futuro e fechar, então, a ideia de sankofa: se wo were fi na wosan kofa a yenki (“não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”).

Em um breve momento de contextualização, Amaro usa a filosofia Akan para nos mostrar que a natureza é um poderoso ancestral e que temos de parar de nos considerar fora da natureza, acreditando que, a partir da exploração dos recursos naturais disponíveis, haveria um mundo novo. Para o músico, em vez disso, é preciso entender que devemos cuidar do mundo que temos agora para que o mesmo sempre exista.

Quando compreendemos o sentido de Sankofa e conseguimos examinar com acuidade o nosso passado, entendemos também o nosso compromisso com as gerações futuras. Afinal, se geralmente aprendemos com o passado de nossos ancestrais para analisar o presente e pensar o futuro, o que estamos fazendo agora para as gerações futuras? O que deixaremos para aqueles que vierem depois de nós?

A música de Baquaqua é trajetória

Tudo o que Amaro nos conta sobre Baquaqua e Sankofa, aliás, é um excelente prefácio para o que vem a seguir nesta apresentação do Múltiplo Ancestral. Criador de uma obra que se apoia em um sistema puro de ancestralidade, o músico associa a repetição da mesma tecla a um som único que representaria parte da trajetória do escritor. 

Entretanto, no momento em que se inicia um período mais turbulento na vida de Baquaqua, Amaro passa a traduzir em contrapontos e deslocamentos no tempo as variadas emoções e sensações vividas por Baquaqua. O tempo musical, a partir de então, nos faz sentir certa angústia – e logo no começo a música já nos apresenta uma sensação de insistência, marcada pela repetição dos toques.

É interessante, para além disso, observar a forma como Amaro sente cada nota que soa no piano: é como se ele estivesse sentindo Baquaqua naquele momento – assim como eu também senti. Aos olhos – e ouvidos – do público, parece que o som do instrumento funciona como elemento de um ritual que convida Baquaqua para estar em nosso tempo presente e mostrar um pouco de sua força.

A partir de especificidades técnicas que explicam, por exemplo, o que são uma transição e um sistema binário em música, assim como de sua experiência artística durante o processo de criação do álbum, Amaro nos detalha como foi resgatar, na história de Baquaqua, o momento em que ele retoma sua cidadania e passa a ser lido como um ser humano. Seguindo um movimento de vaivém, a cadência da música logo volta à sua complexidade, exprimindo que, mesmo falando sobre racismo e outros problemas há muito tempo, ainda insistiremos em tocar na mesma tecla enquanto for necessário. Quando Amaro toca, é Baquaqua que insiste.

Ao longo da atividade, Amaro evidencia que estamos tocando na mesma tecla porque ainda contamos as mesmas histórias e lutamos pelos mesmos direitos. Embora as vitórias sejam pequenas quando comparadas a todo o processo de dor, sofrimento e privações, Amaro traz um tom de esperança em sua fala. Por isso mesmo, segundo ele, decidiu se reunir com alguns colegas para construir uma narrativa que aliasse seus conhecimentos técnicos em música à sua ancestralidade. A ideia de trazer unidade ao projeto reflete, então, a vontade do artista de que todos, juntos, estejamos em sintonia – desde os seus colegas até aqueles e aquelas que simplesmente se sintam atingidos pela música.

Amaro Freitas toca Baquaqua para que possamos entender, sonoramente, como a mesma história funciona em seu interior. Em mim, a música reverbera de forma muito especial e afetuosa: reafirma minha identidade, minha memória e meus ancestrais.

E em você, como funcionam Baquaqua e Sankofa?