Na ocasião do Dia Nacional da Alfabetização, a artista plástica e professora Sylvia Amélia propôs uma oficina que amplia as possibilidades do letramento e dos diversos caminhos de conhecimento e experiência a partir da palavra. Intitulada, “Escrever é abrir buracos”, a atividade põe em prática o trânsito entre um mundo não letrado e as artes gráficas e visuais. A primeira percepção que se tem diante dessa proposta é que, apesar da diversidade do público presente, todos tinham uma inclinação parecida: aprender para ensinar. Educadorxs, professorxs e curiosxs, reunidos em torno do desejo de potencializar processos de cognição no âmbito da leitura e da escrita. Um desejo por instrumentalização que foi correspondido de uma forma surpreendente. Se esperávamos por soluções pragmáticas, Sylvia Amélia nos apresentou um problema cuja resposta é essencialmente poética: “Já sei ler: e agora? O que posso fazer com a palavra?”.

O que acontece enquanto escrevo

Não é de processos mentais que estamos falando aqui, tampouco de conteúdos discursivos. Trata-se da duração da palavra, da escrita como um fenômeno que, por sua vez, origina algo tangível, uma concretude – tal qual a imagem, concreta na medida no meio pelo qual se faz sensível. A proposta de Sylvia Amélia nos faz pensar em modos de combinar palavra e imagem, assim como em fricções entre esses dois domínios. Em sua visão, ambos podem se beneficiar, reciprocamente, e a palavraimagem tem certa eloqüência que estaríamos prestes a descobrir.

Gosto particularmente da maneira como fomos convidados a nos apresentar: cada um deveria dizer seu nome e “vinte palavras que permeiam seu cotidiano”. Enquanto ouvíamos a lista dos outros participantes, íamos capturando palavras ditas por eles. Palavras que nos chamam a atenção, palavras que gostaríamos de roubar. Ao fim desse momento, faríamos o primeiro movimento de edição: eleger apenas uma palavra das duas listas – uma palavra que trouxemos e outra, que tomamos de outro participante.

“Escrever à tesoura sem a mediação do risco”

Escolhidas as duas palavras, começamos a experimentar. Sylvia dispôs alguns exemplos do que poderia ser a possibilidade de uma palavra materializada. Escrever com a tesoura, por exemplo. Como esse movimento se realiza? Que tipo de caligrafia se revela? “A palavra tem hemisférios”, ela diz.

O gesto vai fazendo surgir a palavra a partir desses hemisférios. Recortar quase compulsivamente, recortar sem parar, “sem pensar”. Isso é curioso porque demonstra aquela que talvez seja a vocação mais potente do procedimento de recortescrita indicado pela convidada. O sentido não vem antes ou depois do gesto, pelo contrário: está sempre inscrito no gesto e só nele se revela e se desdobra. O corte vira algo quase automático, o que não retira dele a espontaneidade. Nas palavras de Sylvia, é sobre “escrever à tesoura sem a mediação do risco”.

Notamos, de repente, que o grupo de participantes está em silêncio. Ouve-se apenas o som das tesouras e dos papéis recortados. Raramente se viu o espaço do ateliê tão imerso e concentrado. Uma atenção plena, que parte da materialidade das palavras e suas variações, mas vai além. Os olhares se voltam também para o que restou de cada palavra, para aquilo que ficou “fora da letra”. Esta é uma vocação do recorte para a produção de imagens. Os resíduos sugerem paisagens, corpos. Nada deve ser jogado fora. A partir daí começamos a entender a palavra como construção de lugares e visualidades.

Estou lendo ou vendo?

Último momento de edição: das duas palavras, escolher apenas uma; escolher também duas das cores de papel disponíveis. Agora seria o momento de produzirmos nossos livros, nos quais a palavra eleita se desdobra em possibilidades imagéticas, combinações de formas e contraformas. Interessante perceber como cada participante está preocupado em associar todos os elementos disponíveis para criar um resultado gráfico e estético. Há algo de provocativo, por exemplo, em “Lambida”, livro produzido por uma das participantes. Ali, a escolha das cores é um comentário irônico sobre masculinidades e feminilidades.

Gosto também da forma como Sylvia Amélia acompanha cada participante em seu processo. Não se trata apenas de ensinar a fazer, mas de apontar ao fato de que já o sabemos. Ela mostra as resultâncias do percurso da tesoura sobre a palavra, e ressalta que a complexidade do processo está no inesperado – não naquilo que tentamos controlar. As palavras não precisam ser “legíveis”; tampouco formas que consigamos identificar.

O resultado faz coincidir as duas esferas: a da palavra e da imagem. Não que aconteça uma fusão completa entre ambas: elas ainda se mantém ancoradas no que possuem de singular. A proposta se volta, pelo contrário, à possibilidade de tensionar sentido e presença: ora vejo, ora leio.

“Tem algo de infância no gesto de recortar”

Ao fim da atividade, comentei com Sylvia sobre o quanto havia me impressionado o tipo de performatividade que o recorte instaura no ambiente. O silêncio, o foco, a concentração, a atenção plena. À pergunta, ela respondeu: “Tem algo de infância no gesto de recortar”. Penso, então, como adulto, se é possível restabelecer laços com a postura lúdica diante do mundo que geralmente temos quando crianças. Reflito ainda sobre como determinados gestos são capazes de nos colocar em contato com estados anteriores à consciência e à extrema racionalidade. Em “Escrever é abrir buracos”, Sylvia Amélia resgata uma relação lúdica e afetiva com as palavras. E uma oficina que nos faz pensar a alfabetização a partir desse ponto de partida é uma grata surpresa.